Crítica de Frankenstein (2025): o renascimento do clássico por Guillermo del Toro na Netflix

Frankenstein (2025), a aguardada adaptação de Guillermo del Toro para o romance fundacional de Mary Shelley, chega à Netflix como um exercício monumental de imaginação estética, rigor dramático e elaboração simbólica. 


Em 2h29, o cineasta mexicano — cuja obra sempre transita entre o maravilhoso e o monstruoso — revisita um dos mitos mais adaptados do cinema, mas o faz com uma maturidade filosófica rara. Del Toro não busca apenas recontar uma história; ele a recria nas frestas da subjetividade, devolvendo-lhe o que o cinema, por mais de um século, frequentemente retirou: a dimensão emocional, espiritual e afetiva da relação entre Criador e Criatura.

  • Uma Releitura Ontológica

Ao contrário da maioria das adaptações, que privilegiam o terror ou o grotesco, del Toro oferece um filme em que a monstruosidade não reside no corpo costurado, mas nas ausências, nos vazios afetivos e nos legados de violência que atravessam gerações. O cineasta entende algo que Shelley sugeria com sutileza: Frankenstein não é apenas um romance sobre desafiar Deus, mas sobre a incapacidade humana de amar aquilo que criamos, seja um filho, uma ideia ou uma lembrança.

Del Toro lê Shelley pela via da paternidade — tema recorrente em sua obra — e revela que Victor Frankenstein (Oscar Isaac) não consegue ser pai porque nunca aprendeu a sê-lo. Ele tenta gerar vida a partir de cadáveres, mas o que renasce é o trauma: o trauma de uma infância marcada pela frieza, pela disciplina violenta e por um pai que nunca lhe ofereceu amparo. 


A Criatura (Jacob Elordi) é o espelho desse afeto negado: um corpo que carrega os fragmentos físicos dos mortos, mas cujas dores psíquicas são as que realmente o tornam monstruoso.

A direção de del Toro acentua esta leitura com precisão: a mise-en-scène utiliza espaços claustrofóbicos, luzes filtradas por sombras densas e uma paleta de cores que alterna o cobre do laboratório com o azul-acinzentado da solidão da Criatura. É como se o mundo inteiro estivesse preso dentro de um útero gélido e infértil, um universo onde a vida surge, mas nunca floresce.

  • A ruptura do ciclo de violência
Um dos pontos mais brilhantes desta adaptação está na forma como del Toro enfatiza os traumas geracionais. Victor repete na Criatura exatamente as violências que sofreram em sua formação: punições, rejeições, silenciamentos. A Criatura, por sua vez, devolve essas violências ao mundo de maneira desmedida, não por maldade intrínseca, mas pela falta absoluta de referências afetivas.

Del Toro filma esse ciclo com uma sensibilidade devastadora. Em uma das cenas mais impressionantes da obra, Victor confronta seu próprio “filho”, punindo-o como fora punido. A montagem paralela, com breves flashes de sua infância, cria um comentário visual contundente: o monstro não nasce, ele é gerado, alimentado e perpetuado por práticas sociais profundamente enraizadas.

Esse é, talvez, o aspecto mais inovador da interpretação de del Toro: ao contrário de muitas adaptações que simbolizam a Criatura como a “aberração”, aqui quem se revela trágico é o próprio Victor, aprisionado em um modelo de masculinidade e paternidade incapaz de acolher, ensinar ou amar.

  • As atuações de Jacob Elordi, Oscar Isaac e Mia Goth

Jacob Elordi entrega sua melhor interpretação até agora. Seu trabalho corporal é impressionante: ele constrói uma Criatura que alterna brutalidade e ternura com fluidez, como se cada movimento fosse uma tentativa de aprender o que é existir. Sua voz, baixa e hesitante, contrasta com sua estatura imponente, criando uma tensão interna que ecoa a dualidade do personagem: força física e fragilidade emocional. 

Del Toro dá ao monstro uma humanidade que raramente lhe permitiram. Elordi a encarna com um misto de inocência e desespero, transformando a Criatura não em um vilão, mas em uma criança eterna, perdida no mundo. 

Em contrapartida, Oscar Isaac interpreta Victor Frankenstein como um homem dilacerado por sua própria ambição, não por arrogância científica, mas pela incapacidade de lidar com seus fantasmas íntimos. Sua atuação se ancora nos silêncios: Victor é um pai que não consegue tocar o filho, que não consegue falar com ele, que o teme porque reconhece nele sua própria falha. Isaac constrói um Victor que é, ao mesmo tempo, herói trágico e antagonista, uma figura que nos repulsa e comove.


A grande surpresa, contudo, está em Mia Goth como Elizabeth. Del Toro, ao contrário de adaptações anteriores, devolve à personagem sua complexidade: não a reduz a esposa, musa ou vítima. Elizabeth é, aqui, uma mulher aprisionada pelo destino que os homens escreveram para ela. Goth interpreta essa dimensão com um domínio expressivo assombroso: o corpo tenso, a respiração contida, os silêncios que denunciam seu conflito entre fidelidade, medo e empatia. 

Elizabeth reconhece na Criatura algo que ninguém mais vê: a condição de objeto. Ela compreende, talvez pela primeira vez no cinema contemporâneo, que a Criatura é submetida à mesma lógica patriarcal que aprisiona mulheres: coisas feitas para servir, obedecer, existir em função de outrem. Seu olhar para a Criatura não é de nojo, mas de reconhecimento. 

O filme encontra seu centro emocional nessa intersecção: dois seres reduzidos, oprimidos, desumanizados, que descobrem um no outro uma forma de ver a própria dor.

  • A estética de um mestre do artesanal
Del Toro reprisa aqui sua maestria visual: efeitos práticos exuberantes, maquiagem detalhada, cenários construídos com minúcia quase barroca. O horror é orgânico, tátil, nunca digitalizado ao excesso. Quando recorre ao CGI, o faz com equilíbrio e cuidado, dando peso físico ao impossível — como já demonstrara em Círculo de Fogo. O resultado é uma experiência visual que respeita o legado expressionista das primeiras adaptações, mas que respira a modernidade dos dramas psicológicos contemporâneos.

O Frankenstein de Guillermo del Toro não é uma adaptação, é uma interpretação crítica, emocional e filosófica do mito. Não busca novidade no enredo, mas no olhar. Del Toro resgata a essência do romance de Shelley, ampliando suas alegorias sobre paternidade, abandono, dor e humanidade. E faz isso com a convicção estética de quem sabe que o cinema ainda pode revelar o que a literatura já sugeria há dois séculos:

Não há monstros sem criadores. E não há criadores que não carreguem seus próprios monstros.

No encontro violento entre pai e filho, del Toro encontra o coração trágico de nossa espécie. É, sem dúvida, a adaptação mais sensível, madura e esteticamente da obra de Mary Shelley.

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